Parabéns Professora Erica Almeida!
“Marcada pela segregação socioespacial e racial, a cidade de Campos,
outrora campos dos índios Goytacazes, se desenvolveu mantendo um conjunto de
desigualdades no acesso à terra, à renda e aos direitos sociais, políticos e
culturais. Esse cotidiano de “faltas”, que costuma caracterizar as periferias,
ainda compõe a paisagem da cidade, aprofundando o abismo social e racial e
penalizando milhares de famílias de trabalhadores que ainda vivem à margem do
emprego decente.”
OPINIÃO
Por Prof.ª Erica Almeida
No Brasil, os interesses do grande latifúndio conduziram, por muitos
séculos, a agenda de prioridades do Estado. Dentre elas, destacam-se a
manutenção da escravidão até final do século XIX, a ausência de direitos
trabalhistas no campo durante quase todo o século XX e, mais recentemente, um
conjunto de violações dos direitos trabalhistas e sociais e o crescimento do
trabalho em situação análoga à escravidão no campo e na cidade. Isso, sem conta
a informalidade de mais de 70% do emprego doméstico.
A articulação entre as oligarquias agrárias, os banqueiros e grande
parte do empresariado, a partir de 2013, não só deu sustentação política ao
impeachment de Dilma Rousseff, como também, às Reformas Trabalhista e
Previdenciária que penalizam aqueles que vivem do trabalho, particularmente, os
mais pobres. Como se não bastassem os ataques aos direitos do trabalhador,
transformado em uma “mercadoria” completamente desvalorizada, a política
ultraneoliberal dos governos que se sucederam continua avançando, por intermédio
dos grandes investimentos econômicos, sobre os territórios indígenas e
quilombolas, sobre a terra dos camponeses, os mares e rios dos pescadores
artesanais, colocando em risco a reprodução social dessas comunidades
tradicionais e do ambiente em escala local, nacional e planetária e, com ele, a
sobrevivência da humanidade.
Considerada uma dimensão estrutural da experiência imposta pelo
colonialismo europeu, a escravidão funcionou como um elemento de classificação
e hierarquia entre aqueles que tinham humanidade e os que não gozavam dessa
mesma humanidade, sustentada pela ideologia da supremacia branca e do racismo.
O fim do terror da escravidão não foi capaz de pôr fim à violência
institucional contra os negros. A violência e o racismo abrigados nas instituições
do Estado Republicano moldaram o seu modo de agir, sobretudo contra as parcelas
pobres e negras. Essas práticas sociais não tiveram outra intenção senão a de
desqualificar e silenciar o povo preto e, com ele, toda a sua cultura,
tradição, fazeres, saberes, crenças e religiosidades; aliás, um direito dos
brancos europeus desde o século XVIII.
Sem nenhum apoio de políticas públicas voltadas para a sua integração
econômica e social, os recém- “cidadãos” foram obrigados a se “virar” em um
mundo hostil e racista e a se sujeitar aos piores trabalhos e remunerações, com
moradias indignas e, quase sempre, com a experiência do estigma, da violência
policial e do encarceramento. A partir dos anos de 1950, a expulsão dos
trabalhadores do campo criou os “boias-frias”, trabalhadores rurais
precarizados e empobrecidos e, agora, residentes nas periferias das cidades.
Mais uma vez, sem apoio de políticas públicas, esses trabalhadores se
responsabilizaram, sozinhos, pela sua moradia, geralmente autoconstrução, e
pelo “sustento” dos filhos.
As cidades reproduziam, no seu cotidiano, as desigualdades de classe,
acrescidas do racismo estrutural, racializando os espaços urbanos e forjando
periferias completamente desprovida dos direitos de infraestrutura urbana e de
um conjunto de bens e serviços coletivos materiais e imateriais. Marcada pela
segregação socioespacial e racial, a cidade de Campos, outrora campos dos
índios Goytacazes, se desenvolveu mantendo um conjunto de desigualdades no
acesso à terra, à renda e aos direitos sociais, políticos e culturais. Esse
cotidiano de “faltas”, que costuma caracterizar as periferias, ainda compõe a
paisagem da cidade, aprofundando o abismo social e racial e penalizando
milhares de famílias de trabalhadores que ainda vivem à margem do emprego
decente.
Passados mais de 30 anos da Constituição Cidadã, que incluiu um conjunto
de direitos no texto constitucional, as práticas sociais, particularmente, as
ações institucionais, caminham em direção contrária `CF de 1988, sobretudo nos
espaços socialmente estigmatizados. Percebidos como lugar de “bandido”, os
lugares dos trabalhadores pobres e negros foram transformados em lugar de
“gente perigosa”, passando a justificar não apenas a ausência de um conjunto de
instituições e ações relativas à proteção social e à garantia dos direitos
constitucionais, mas, também, a presença ostensiva e violenta de outras
instituições e ações governamentais.
Essa incapacidade do Estado, por intermédio das suas instituições, de
proteger a todos e todas, sem distinção de classe, raça e/ou etnia e gênero,
não constitui um problema de orçamento e nem, tampouco, de recursos humanos,
ainda que esses problemas estejam presentes em todas as áreas do Estado. Ele é
resultado da ausência de reconhecimento institucional da condição de cidadão do
trabalhador pobre brasileiro. Essa recusa vai mais longe quando nega a
humanidade aos homens e mulheres negros, particularmente aos jovens, vistos
como aqueles que não são dignos de viver. Esta postura não se restringe às
instituições do Estado; ela vem ganhando legitimidade também na sociedade
civil, patrocinada por aqueles que participaram ativamente do Golpe de 2016, e
do processo de destruição dos direitos trabalhistas e que continuam operando
contra o emprego, a saúde, a educação e a assistência social, políticas
públicas necessárias à grande maioria da população, e contra o ambiente, nosso
maior patrimônio coletivo. As ações dos dois últimos (des) governos no que se
refere às privatizações, ao des-financiamento das políticas públicas, aos
ataques às instituições liberais e à Constituição de 1988, ao uso
indiscriminado da violência institucional no enfrentamento dos movimentos
sociais e à militarização da segurança pública resumem
um modus operandis em curso na resolução dos conflitos sociais e da sua
“pacificação”, gerando um ambiente de medo e de insegurança e impondo um
conjunto de desafios às lutas por direitos.
Nesse sentido, não se trata de indagar se as instituições estão
funcionando, mas de problematizar as práticas institucionais, assim como, as
suas relações e articulações com interesses privados e corporativos, alguns
inconfessáveis. Isso nos faz pensar que a omissão na defesa intransigente dos
direitos universais e de uma democracia participativa (que vá além das eleições
de 4 em 4 anos), pode significar não só a ausência de republicanismo das nossas
instituições “republicanas” tardias, mas, também, a subordinação de grande
parte delas aos interesses e projetos dos novos “donos do poder” e a sua
racionalidade. Uma racionalidade empresarial que vem se espraiando, cada vez
mais, nas instituições “públicas” ou que ainda carregam esse adjetivo, e que
transforma trabalhadores em empreendedores e cidadãos em consumidores e
competidores. A possibilidade de um futuro, tão ameaçado, aparece nas ações dos
movimentos sociais que resistem a essa destruição generalizada dos interesses
comuns e da agenda por direitos coletivos. Ao resistirem, eles vão recuperando
experiências de compartilhamento e construindo novos sentidos e novas
sociabilidades, mais coletivas e solidárias. É nelas que devemos apostar!
FONTE: PRESSENZA INTERNATIONAL PRESS AGENCY, publicado em 7/09/21 –
Redação Rio de Janeiro